sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013


“O Mitra”

Levanto-me de um salto ao ouvir bater a porta… 12:00 – já é tão tarde… deixei-me adormecer… também pudera, estive no Banco de Portugal das 05:00 ás 09:00… Agora, o remédio é correr para o duche, tomar o verdadeiro “banho à gato” e, ala que se faz tarde…
Acabei de me fardar e luto com o “talabarte” e com o “coldre”… a seguir, outra luta – desta vez é com os fechos das botas, que se lembraram de encravar… não sei porquê mas, quanto mais atrasada estou, pior me corre a colocação dos atavios… Acabada a minha luta com os acessórios, apanho o cabelo numa trança meio torta (resultado das pressas), coloco o boné e dirijo-me para a cozinha no intuito de engolir um cafezito ás pressas, porque o tempo já não vai dar para mais, entro ás 12:45 – quando chegar ao “giro”, vou á Favorita comer qualquer coisita – penso, enquanto levo a chávena escaldante aos lábios. Com a pressa, esqueço-me que o líquido está a quase a ferver, dou um trago sôfrego, queimo-me, largo a chávena repentinamente e, claro, entorna-se o café … a cozinha fica em “estado de sítio”… mas, tenho sorte – não sujei a farda e quanto á cozinha, quando voltar tratarei do assunto. Corro para o quarto de banho, lavo os dentes á pressa e passo um batom nos lábios que já havia definido com lápis mais escuro. Olho-me novamente ao espelho, verifico mentalmente todos os pormenores… falta o assobio – está no bolso da gabardina… corro para o quarto e pego na malinha preta de tiracolo, onde tenho a carteira profissional, o bloco, a caneta, os lenços, a minha cigarreira de couro preto e mais uma meia dúzia de acessórios femininos – coisas de mala de mulher…
Saio de casa e após verificar se fechei a porta á chave (normalmente esqueço-me), corro em direção á paragem do autocarro… sei que se perder este, acabarei por chegar atrasada ao serviço e o Subchefe que hoje está de turno á “teia” não é propriamente sensível a atrasos não justificados… sei que se me atrasar, nem que seja um triste minutito, terei “sermão e missa cantada”…
Estou na formatura e o Subchefe distribui os “giros”… «360...» – vocifera, reparando que estou completamente “a leste” do que ele já dissera; «pronta!» – respondo timidamente. «Giro 3… Sabes onde é?» - questiona; «Sim, meu Subchefe…» – lá acabo por responder. Acabada a distribuição dos serviços, dá-nos a “chazada” do costume e… lá saímos para a rua. Na companhia da Ângela, a minha “compincha” de casa, desço a Rua de Camões e chego ao Largo do Campo Novo em amena cavaqueira sobre os meus desastres matinais aos quais ela não assistira, pois saíra de casa antes de eu acordar. Chegadas ao início da Rua de Santo André, despedimo-nos – ela fica por ali – eu continuo em direção á Rua dos Chãos, Rua do Carvalhal e Praça Conde de Agrolongo – o meu destino final. Estou completamente esfaimada e não entrei na “Favorita” – ao olhar lá para dentro, reparei que estava lá o Comissário António – resolvo entrar na Pastelaria Bastos, que fica mesmo ali á entrada da Praça, no intuito de dar que fazer aos dentes e acalmar o estômago. Dirijo-me ao balcão – não devo sentar-me porque estou fardada e de serviço – peço uma “frigideira” e um sumo. Enquanto aguardo o repasto, dou comigo a matutar nos porquês que me trouxeram para esta cidade… penso na desilusão dos meus familiares quando lhes dissera que jamais ficaria em Santarém, que dista apenas 13 kms da minha pequena vila, penso nas saudades imensas que tenho dos meus pais, do meu irmão, dos meus amigos… a distância que nos separa é tão grande… porque é que eu sou tão teimosa? Afinal, a culpa desta situação é apenas toda minha – fui eu que escolhi vir para Braga.
 Quando, quase no final do meu curso, me fora dado o impresso para escolher 3 Distritos, por ordem de preferência para ser colocada, eu escolhera Braga em 1.º lugar, Aveiro em 2.º e Funchal em 3.º - escusado será dizer que, ninguém percebeu os “porquês” das minhas escolhas – apenas eu e esse será um assunto a ficar “no segredo dos Deuses”, ou talvez não… quem sabe um dia, irei confessar a alguém os meus motivos… enfim… não posso queixar-me, fui eu que escolhi e a ser um erro, este será o “meu erro”.
A “frigideira” e o sumo chegam finalmente ao balcão e devoro tudo num ápice. Termino a minha parca refeição com um café bem forte, pago e saio para a rua.
Está uma daquelas tardes de início de Fevereiro, um “sol arrepiado” e um frio que me gela até á alma. O trânsito flui normalmente, sem problemas. Dou uma volta á praça em busca de algum veículo em transgressão – não se passa mesmo nada. Na praça de “Táxis” do lado norte, nem um carro. As poucas pessoas que se atreveram a sair á rua nesta tarde gélida passam por mim em passos apressados. Começo a arrepender-me de ter escolhido vir para esta cidade – não tem nada a ver comigo… as mentalidades retrógradas deste povo revoltam-me… Cheguei há pouco mais de um mês e já todos me conhecem, comentam acerca de mim e das novas “mulheres polícias”… sinto que não gostam de mim, apercebo-me que tecem comentários em surdina, á minha passagem… Por vezes, quando estou de sinaleira, normalmente no cruzamento da Avenida Central com a Avenida da Liberdade, Rua dos Chãos e dos Capelistas, chegam a juntarem-se em grupos a fiscalizarem todos os meus movimentos… sinto-me o verdadeiro “bicho-raro”…
Estou nesta espécie de torpor melancólico quando, repentinamente, ouço o barulho ensurdecedor de uma motorizada com o “escape livre”… o rapaz que a conduz não traz capacete, e, ao passar na zona onde me encontro, olha-me, faz uma careta e… inclinando o veículo todo para trás, passa por mim equilibrando-se apenas na roda traseira!
Dou por mim a pensar que deveria ter-lhe feito paragem, mas… seria quase impossível fazê-lo parar se este entendesse não o fazer… ainda não me tinha refeito da situação e já o “malandreco” aí vinha outra vez, após ter contornado toda a praça. Ah não...desta vez, vou fazer-lhe paragem! E se bem o pensei, melhor o fiz. Coloco o assobio na boca, levanto o braço em sinal de paragem e… para meu espanto, o transgressor imobiliza o veículo junto dos meus pés… quando olho bem para o “meliante”, deparo-me com os olhos mais lindos que algum dia vira, de um maravilhoso e límpido verde-esmeralda a adornarem um magnífico rosto bronzeado, emoldurado por belos cabelos loiros… o corpo atlético faz-me lembrar um “Deus da mitologia grega”… mas que belo exemplar acabo de pescar… – penso, ainda aturdida pela figura e pela situação…
«Boa tarde, senhor condutor… faculte-me os seus documentos e os do veículo, se faz favor…» – digo-lhe, após fazer uso do cumprimento habitual, uma continência.
«Boa tarde, senhora Guarda Marta.» – responde-me educadamente. «Ora aqui está o meu Bilhete de Identidade» – diz, passando-me para a mão o dito documento.
Pego no meu bloco e na minha caneta e começo a anotar os dados de identificação…
«Então… senhor Abel da Silva Oliveira… a sua morada é…?»
«Abel da Silva Oliveira Mitra… senhora Guarda…» – responde-me com um sorriso trocista, á espera da minha reação.
«Desculpe… mas… disse-me Abel da Silva Oliveira Mitra?» - indago confusa.
«Sim, Guarda Marta… Abel da Silva Oliveira Mitra.» – e volta a sorrir.
«Senhor Abel… aqui, no seu B.I. não está o sobrenome “Mitra”!» – exclamo, já ligeiramente alterada com a atitude de gozo do individuo.
«Pois se não está… deveria de estar… o meu nome é Abel da Silva Oliveira “Mitra” e vivo no Bairro da Misericórdia… É lá que vivem todos os “Mitras”…» – volta a insistir.
«Bem… e os documentos da motorizada?» – indago, dando por finda a questão do sobrenome.
«Esses não os tenho, senhora guarda… a mota não é minha… roubei-a.» –  é a resposta que obtenho.
Fico a pensar que o “artista” está a gozar comigo, mas… «Então, Sr. Abel… lamento mas vai ter que me acompanhar á Esquadra.» – declaro prontamente.
«Muito bem… vamos lá então.» – a pronta anuência deixa-me ainda mais confusa mas… agora já não há volta a dar…
E aí vamos nós… decidi-me pela Sede do Comando pois sei que lá obterei todas as informações necessárias relativamente ao indivíduo e ao veículo mais rapidamente. Entramos na Rua Justino Cruz, em direção ao Largo Carlos Amarante e daí á Rua dos Falcões, onde funciona o Comando… eu e o meu belo transgressor, com a dita motorizada á mão. Reparei que por onde passávamos, as cabeças se moviam em olhares curiosos, alguns com sorrisos trocistas, outros bastante surpreendidos, mas… achei que tal se devia á “famosa curiosidade” bracarense em relação a tudo que tinha a ver com “mulheres polícias”…
Eis que chegados ao Comando, o Sentinela olha-nos de alto a baixo, e, surpreendido indaga-me: «Ó Marta, o que é que aconteceu, heim?!» Conto-lhe que o indivíduo me dissera que roubara o veículo e dirijo-me á porta da Esquadra, ignorando a reação de surpresa divertida do meu colega…
Chegados á Esquadra, obtemos a mesma reação do graduado de teia e do colega de plantão… não percebo, mas também não me importo… acho que deve ser por eu ser mulher e maçarica que eles reagem assim á detenção que eu acabara de fazer… mas… eis que após fazer uso do telefone o Subchefe me manda aguardar pelo Comandante Operacional…
Já começo a ficar ansiosa e ligeiramente aborrecida com tanta burocracia quando vejo chegar o Comissário Martins – Comandante Operacional do CD Braga, que, ignorando-me completamente, se dirige ao “meliante”: «Então Abel, sempre ganhaste a aposta, heim?!»
Após uma longa conversa entre ambos e algumas frases divertidas que ouço dos meus colegas, fico a saber que acabara de deter o “Chefe” do “Gang dos Mitras”, que era o mais temível gang do Minho durante os anos oitenta, e que este havia apostado que seria preso por uma das novatas…

Jana – Junho de 2009

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